quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

atendendo a pedidos...

“O tempo sempre me parece um quebra-cabeça filosófico e eu construí, sem lhe dar atenção, uma filosofia do instante (...) por não compreender a duração. E atualmente entrevejo uma teoria do tempo. Sinto-me embaraçado ao expor minha teoria. Sinto-me um menino.”
Jean Paul Sartre

O tempo é um dos objetos mais abstratos e difíceis de serem estudados em qualquer campo do conhecimento. Ele é transcendental ao mundo empírico e real, e assim se mostra ao ser humano. Sua completude se encontra muito acima de qualquer estudo ou teoria para ser inteiramente entendida, fazendo parecer às pesquisas já realizadas a seu respeito relativamente frágeis e ínfimas, e o ser humano pequeno demais para ter a capacidade de explicar sua dimensão.
Uma fotografia tirada há dois minutos tem o seu agora no instante em que é clicada, tornado-se presente registrado, e logo em seguida já é enviada para as coisas passadas. De acordo com Santo Agostinho, o tempo “só pode estar vindo do futuro, passando pelo presente e se dirigindo para o passado. Ele vem de um lugar que ainda não existe, passa por um campo que não há duração e caminha em direção ao que já não existe mais”. Heidegger, entretanto, contesta essa idéia de Agostinho de que o passado é o inexistente afirmando que ele pode, na verdade, “ser retomado no como de seu ser vivido”, ou seja, de que o passado é essencial e faz parte do que foi construído para o presente, e existe de certa forma ainda no agora, da mesma maneira que se mantém para o futuro. O filósofo Luciano Donizetti afirma tal linha de pensamento, dizendo:

“inicialmente, o passado existe a partir do presente, não como iluminação ou resquício (mancha) no presente, mas para o presente. O passado é aquilo que o para-si é sem possibilidade de coincidir com seu ser (foi) e, desse modo, está aberto ao presente.” (Donizetti, 2008,p.244)

O tempo natural, diz Heidegger, é parte de tudo e tudo faz parte dele – as coisas não se dão no tempo, na verdade o tempo está nelas. Partindo de tal pensamento, seu registro cronológico se nos dá, de certa maneira, numa tentativa inútil de medir algo que não tem exatamente uma forma simples de ser visualizada, porém é necessário ao ser humano para poder situar acontecimentos no tempo-espaço, de uma forma cíclica e maçante, que se repete identicamente ao contar os segundos, minutos, horas e dias do ano. O que resta a fazer é observar como o Tempo, grandioso em sua configuração, parece acessível e simples no momento em que atravessa as coisas: a folha de uma árvore que cai anunciando o outono, o vento que toca a grama e a faz dançar por longos minutos, as rugas que marcam o rosto de qualquer pessoa com o passar da idade - todas formas poéticas e delicadas dele mesmo se mostrar e tentar ser compreendido. Por ser visivelmente muito maior do que qualquer teoria possa explicar, Descartes, por exemplo, diz que o tempo só pode ser controlado por Deus, visto que não é possível nenhuma alteração no passado a partir do momento em que ele é fixado no presente, e que as três dimensões temporais só existem em instantes reduzidos, sendo que, se é verdade que exista um passado e um futuro, cabe a Deus controlar, por ser tão imenso e abstrato. O ser humano é capaz de modificar apenas o instante e seu presente.
Esse estudo infindável já realizado sobre o tema, que continua se atualizando com frequência, acabou tornando-se de grande interesse para a pesquisa da estudante Suzzana Magalhães, aluna do nono semestre de bacharelado em Artes Plásticas da Universidade de Brasília. Tendo sua produção completamente fundamentada em fotografia durante todo o seu percurso artístico, a artista pretendia, no principio do curso de Ateliê 1, produzir apenas um trabalho teórico, abandonando completamente sua produção. Por sugestão de Geraldo Orthof, orientador da matéria, resolve testar em sua pesquisa uma nova forma de mídia ainda não explorada por ela: o vídeo. O desafio seria conseguir falar sobre o Tempo utilizando uma técnica completamente nova para a artista. Decerto que os princípios para se produzir um vídeo têm raízes sim na fotografia, mas a tarefa de fazê-lo seria árdua da mesma maneira: questões técnicas, principalmente, seriam a maior barreira a ser enfrentada, propiciando, porém, um maior estudo para que uma série de trabalhos fosse realizada. Utilizando como bibliografia Heidegger, Sartre, Alan Lightman, entre outros, e como referência iconográfica vários vídeos, como por exemplo, o trabalho da artista Karina Dias sobre paisagem, busca inspiração para começar a produzir obras que tivessem o mínimo de coerência e força para poder tentar explorar algumas das teorias mais conceituadas sobre o tema em questão, conhecidas até o momento. O futuro é aquilo que é projetado, é o desconhecido rumo ao qual o presente é arrastado, e, a partir do presente é que se torna possível fazer ressurgir o passado ou projetar o futuro. O ato de se captar uma cena por alguns minutos, a sugestão de se trabalhar com vídeo é um tanto quanto interessante, pois, esse tipo de mídia traz claramente a questão do tempo agregada em si (toda a obra de arte traz, na verdade, mas é mais simples de percebê-lo através de filmes documentais). O momento em que dada cena é filmada é constituída por aquele presente da imagem que se dá instantaneamente à câmera, mas se torna passado automaticamente ao fim da gravação do vídeo. O filme quando revisto e re-projetado, se ressignifica e, para o espectador, a imagem torna-se presente mais uma vez, dando a possibilidade do público se colocar no local onde foi produzida, reconstruindo esse presente que já havia sido deixado no passado. O futuro da obra é sugerido e se reconstrói também à medida que o vídeo vai sendo repassado e apresentado a novos espectadores: essa é a mágica do tempo, esse total descontrole que se tem sobre ele e onde o futuro, o passado e o presente se fundem constantemente, sendo inclusive difícil saber diferenciar em que momento o presente se separa das outras duas dimensões temporais. A partir do presente tem-se total acesso ao que já passou e se constrói o que ainda há de vir, pois, é essa dimensão a base de toda a teoria temporal, essa fração de segundos que separa o passado do futuro.
A primeira tentativa de Suzzana Magalhães de construir um trabalho com esse tema, acabou por parecer-se um pouco demais com um videoclipe, durando cerca de oito minutos e tendo a música How Long Has This Been Going On do grupo de jazz Brad Mehldau como trilha. O vídeo foi gravado de forma quase ininterrupta, filmando basicamente imagens do Cerrado na rodovia que liga a cidade de Caldas Novas à Brasília. A forma como foi filmado lembra bastante o ritmo da música utilizada, como se as imagens acompanhassem algumas variações temporais e tonais dos sons produzidos pelo grupo de jazz. Por ser o primeiro experimento em vídeo, apresentou algumas falhas na questão técnica, tendo ainda vários detalhes a serem corrigidos na pós-edição. Nos outros trabalhos apresentados em seguida, tendo o período de três semanas para produzi-los, o estilo de videoclipe foi mantido, apresentando, entretanto, cenas diferentes das anteriormente propostas. O primeiro, por exemplo, filmava uma tempestade em close-up, recortada de um fundo completamente negro da noite, e que parecia fazer desenhos contínuos na imagem enquanto as gotas da chuva se movimentavam numa espécie de balé em sequências aleatórias que não se repetiam. O outro vídeo apresentado juntamente com o da chuva possuía em primeiro plano e em modo macro gotículas de água que ficaram na lente da máquina filmadora; enquanto isso, ao fundo, via-se piscando luzes coloridas de natal que ora perdiam o foco, ora o foco voltava ao normal, tendo o barulho da chuva ignorado e em seu lugar a música de Aphex Twin, Avril 14th, como trilha. Após todos esses experimentos, Suzzana percebeu que ainda não tinha atingido o primor que desejava: embora a poética dos vídeos estivesse bem próxima do que pretendia, era preciso corrigir algumas questões, como o tipo de áudio a ser inserido - o cuidado deveria também ser o de não deixar que virassem meros clipes que representassem a música utilizada no vídeo. Uma nova tentativa foi feita, acrescentando legendas às imagens, tentando manter o áudio natural da cena, que normalmente possuía barulhos de grilos ou de chuva ao fundo e suprimindo a utilização de músicas: por ter sido utilizado um texto extremamente narrativo na legenda, o vídeo concluído ainda possuía detalhes a serem modificados, visto que seu resultado foi um tanto quanto cansativo e piegas.
Continuando a pesquisa, e inspirada num dos textos contido no livro “ Os Sonhos de Einstein”, no qual o autor diz que

“algumas pessoas nascem sem qualquer sentido de tempo. Como conseqüência, seu sentido de lugar é intensificado chegando a níveis torturantes. Elas ficam deitadas na grama e são consultadas por poetas e pintores do mundo inteiro. A esses que não vêem o tempo implora-se que descrevam a localização exata das árvores na primavera, a forma da neve nos Alpes, o ângulo dos raios solares ao banhar uma igreja(...). Mas esses que não vêem o tempo são incapazes de contar o que sabem. Porque a fala requer uma sequencia de palavras, ditas no tempo.” (Lightman, 1993, p.113) ,

Suzzana produz uma última série de obras. Inspirada também nos vídeos intitulados Meditations, do artista Gary Hill, em que cenas são mostradas ao mesmo tempo em que narradas (como por exemplo, encher uma caixa de som de areia enquanto uma voz ao fundo explica “a caixa de som está sendo coberta”), percebe que buscando a simplicidade poderia talvez atingir o resultado que tanto ansiava. Um primeiro vídeo mostrava também luzes de natal sendo refletidas no vidro de um carro, em close-up, de forma que não era possível distinguir muito bem a cena. O áudio acrescentado possuía um leve tom de humor, e foi escolhido por justamente, num momento em que a estudante pesquisava referências de vídeos na internet, se deparou com um tutorial interessante no qual um músico japonês explicava como produzir uma flauta utilizando um ovo. As tentativas de música a serem tocadas com o objeto em questão produzem um barulho relativamente hilário e dão um tom cômico ao registro de uma mesma imagem contínua e aparentemente entediante. O segundo vídeo apresentado utilizava a mesma imagem do trabalho já citado anteriormente no qual um temporal foi filmado. Dessa vez, o som da chuva foi mantido ao fundo, e com o auxílio do técnico em engenharia de áudio Tomás Seferin, foi produzida uma trilha que remetesse a um ambiente familiar: sons de talheres sendo utilizados possivelmente durante uma refeição, assim como o de legumes sendo cortados; há também o barulho da televisão ao fundo, pessoas conversando qualquer coisa incompreensível, enquanto muda-se de canal frequentemente e, se prestar atenção, é possível entender que a maioria dos programas fazem alguma analogia ao tempo. A idéia do vídeo era a de passar o ambiente familiar de quando se está em casa, num dia à toa de chuva, como por exemplo, um domingo à noite vendo televisão, conversando, e não se tem a preocupação com as horas que correm. O terceiro vídeo, com a temática muito parecida com o anterior, foi o de melhor execução, na opinião da artista: a cena mostra um arbusto sob ação de uma ventania, com a sugestão de paisagem ao redor, mas não muito clara. O áudio natural da filmagem foi mantido, e uma legenda simples passa lentamente explicando o que a artista via no momento em que gravou a cena – o espectador nada enxerga além do arbusto e algumas árvores ao fundo, mas tem a continuação dessa paisagem sugerida pela descrição detalhada da legenda, e que, por outro lado, dá a mesma idéia do vídeo da chuva, da mesma série, remetendo o espectador a um momento calmo, como quando se está sentado à porta de casa olhando o clima, as aves voando, o vento passando, sem se preocupar com as horas que correm e costumam ser tão torturantes na vida contemporânea.
Os três vídeos acima foram apresentados como trabalhos finais em Ateliê 1, porém, o trabalho de Suzzana está apenas no início, e a estudante pensa em testar outras mídias inéditas (para ela), como por exemplo, montar uma instalação: a idéia inicial seria a de fazer uma longa série de fotografias que retratassem um local muito movimentado da cidade de Brasília entre as 6 da manhã e às 18h, com pessoas andando e o percurso do sol nascendo e caminhando pelo céu até se pôr. As fotografias seriam, nesse caso, acompanhadas de legendas simples e claras, no estilo de fotonovelas, mas descrevendo também a paisagem que está além das imagens e o público não pode ver, devido ao limite do enquadramento, da mesma forma das legendas inseridas no último vídeo apresentado pela estudante.
A questão do tempo é ampla e possui referências em todos os campos possíveis de conhecimento, de forma que, para o próximo ano de pesquisa, Suzzana ainda deve abordar o tema da memória em Proust, inspirando-se no romance “Em Busca do Tempo Perdido” do autor, além de pesquisar como o tema se deu para a mitologia grega, bíblia e outras crenças. O cuidado será o de se evitar produções por demais piegas ou, ao contrário, que caiam completamente na abstração, para que o trabalho não se torne algo impossível de ser compreendido (como acontece com alguns textos de filosofia contemporânea que discorrem sobre o Tempo) e, ao contrário, seja algo acessível ao público para que as pessoas se indentifiquem com as imagens apresentadas pela artista. As possibilidades a partir disso são inúmeras, tanto na maneira de apresentar e produzir uma futura série de trabalhos, como nas áreas específicas nas quais tal tema será estudado e servirá de inspiração, de forma que o próprio tempo de pesquisa irá dizer os rumos certos que a poética da estudante seguirá.

Referências:


FADIMAN, Clifton e GOETZ, Philip W. The Syntopicon – An Index to the Great Ideas: Great Books of The Western World, v.2. Londres: Encyclopedia Britannica, Inc., 1996.
HEIDEGGER, Martin, O Conceito de Tempo. Tradução de Marco Aurelio Werle – Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. São Paulo, N. 2,1997.
LIGHTMAN, Alan, Sonhos de Einstein. Tradução de Marcelo Lev – São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SARTRE, J. P. A Imaginação. Col. Os Pensadores, p. 33. Tradução Luis Roberto Salinas Fortes. São Paulo: ed. Abril Cultural, 1978.
SILVA, Luciano Donizetti, Tempo e Temporalidade na Filosofia de Sartre, Pricípios, Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p.225-248. Disponível em
http://www.principios.cchla.ufrn.br/24P-225-248.pdf.Acessado em 28/01/2011.
Sites:
http://www.karinadias.net/ . Acessado em 17/01/2011.
http://www.garyhill.com/ . Acessado em 18/01/2011.
vídeos disponíveis em :
http://vimeo.com/19581300

domingo, 2 de janeiro de 2011

Em 1968, o Grupo Rex abriu a Exposição-Não-Exposição, que durou apenas 8 minutos. A forma como foram apresentados os trabalhos e a maneira revolucionária com a qual propuseram a vernissage causou um alvoroço descomunal e resultou na apropriação por parte do público de todas as obras da galeria. O Rex, ao contrário do que era esperado, ficou satisfeito com o que ocorrera, e Nelson Leirner, um dos artistas que tivera os trabalhos "roubados" durante a exposição, anunciou que a noite foi de grande êxito para o grupo.

Da mesma maneira que ocorrera na década de 60, numa sexta –feira, dia 05 de novembro de 2010, aconteceu na Galeria UnB, na 406 sul, uma vernissage tão dinâmica quanto propôra o Grupo Rex na sua época: Laurem Crossetti, aluna de bacharelado em Artes Plásticas da Universidade de Brasília, organizou uma exposição que deveria ser montada na hora, com a presença do público, e teria curadoria e textos de um futuro catálogo criados pelas pessoas presentes em sua abertura.

E assim se passou a vernissage: era permitido a livre montagem das obras, e ficava a critério do artista a disposição de seu trabalho dentro do espaço da galeria, assim como a moldura que seria ou não colocada e a modificação que poderia ser feita em trabalhos de outros artistas e afins. Após cerca de uma hora de exposição, houve a intervenção do grupo Corpos Informáticos, que montara no meio do espaço cultural uma área para se brincar com bolinhas de gude. Após alguns minutos, o local foi tomado por um mar de bolinhas de vidro, que se espalharam por todos os lados, inclusive atravessando a porta da galeria e se perdendo na grama que circuncidava o local. Com o auxílio de Bia Medeiros, professora da UnB, também fizeram intervenções em trabalhos da exposição, montando uma grande teia de fita crepe por toda a galeria, sem, de maneira alguma, prejudicar as obras.

Logo em seguida, eis que o público entendeu que a exposição poderia ser o que bem tivesse vontade que fosse, e se sentiu livre para mudar as obras de local, colocá-las numa parede diferente do que determinado artista já havia decidido, intervir censurando uma obra específica com um grande X de fita e assim sucessivamente. Resultado : a cada cinco minutos a galeria mudava completamente sua forma. Se fosse necessário se ausentar do lugar durante dez minutos por qualquer motivo, quando voltasse tudo estava diferente. Uma exposição completamente orgânica e viva.

A Presença das Idéias, na realidade, foi uma mostra que necessitou claramente do público para existir – como qualquer outra na verdade, mas o fato é que essa, especificamente, precisou da intervenção de quem estivesse em sua abertura para que tomasse forma. O interessante é que, apesar de a maioria das pessoas que lá se encontravam não ser de estudantes do departamento de artes da UnB, nem todos sabiam como funcionava a montagem: a disposição das obras no espaço, as obras que poderiam ou não ser colocadas devido a seu tamanho, a forma como eram pregadas na parede, etc, são coisas que efetivamente se aprendem quando se trabalha num Espaço Cultural e não, infelizmente, no curso acadêmico. E é de fato uma defasagem no ensino de arte, não só apenas da universidade de Brasília, mas como de várias outras no país; dessa forma, há de se denotar que Laurem Crosseti abriu esse espaço para o público poder participar de algo completamente novo.

O impasse é que, se a idéia parece ser inovadora – e o é – ela deve ser vista nesse primeiro momento como um experimento. Na abertura da exposição, após algumas várias intervenções, determinadas pessoas resolveram contribuir um tanto mais que as outras, talvez não medindo limites para a sua participação: a fita crepe que estava criando uma teia entre as obras, sofreu uma ação que a colou sobre as obras. Algumas aquarelas delicadas foram realocadas sobrepondo-se umas às outras, dando um peso no grupo de imagens que eram incoerentes com o trabalho do artista. Obras foram colocadas no sentido inverso, sem muito julgamento para isso, outras umas sobre as outras: no fim, o que deveria ser uma exposição com a participação do público, passa a ser um grande amontoado de obras numa galeria, sem muitos critérios para formar algo coeso e coerente.

Na verdade, a idéia da curadoria coletiva continua sendo louvável. O porém se dá em como se é permitido fazer isso. Deveríamos, talvez, limitar a ação do público durante a exposição, solicitando que tomasse cuidado para não danificar as obras, prestasse atenção na poética dos artistas e atentasse no momento de manusear os trabalhos para que nada fosse extraviado: um tanto incoerente. Não seria possível pedir tais coisas para pessoas que não são habituadas ao meio artistico e não enxergam esses limites tão claramente, o que inclusive para os que já estudam arte e fazem parte dessa redoma, não é algo assim tão simples. Além do que, me parece um tanto quanto abstrato o poder que teria a curadora de julgar quem é grande conhecedor de arte e quem não o é.

A arte existe pra ser observada e sentida e ela só pode ser completa se houver público para prestigiá-la. Dessa forma, parece-me justo convidá-lo a participar da montagem e produção de uma exposição que foi feita para ele. Mas é de suma importância pensar nos limites que se deva colocar para isso, visto que as obras precisam ser de certa forma preservadas, e algumas são necessarimente mais frágeis que as outras (e qualquer simples toque inadequado por qualquer pessoa possa ser o suficiente pra destruí-la); é preciso pensar nesse distanciamento histórico que se deu entre obra de arte e público no decorrer dos últimos séculos e como seria possível transpor esse abismo que transforma o artista num ser sobrenatural e inatingível e trazê-lo de volta ao plano dos mortais (que ele em verdade o é), no mesmo nível de pessoas que não produzem arte. Precisa-se quebrar essa redoma mágica que circunda uma exposição artística e faz parecer o artista como um deus criador, e a partir daí entao será possível se sentir mais íntimo e próximo do que se é apresentado. Tendo isso como ponto de partida, para que uma mudança se efetive, será necessário um longo e profundo trabalho de ressignificação dos espaços culturais e museais, para que passem a ser o espaço que de fato são: um meio de ligar o artista ao espectador, ultrapassando todos os pré-conceitos que se dão em ambas as partes - o público se vendo necessário para que a obra de arte se complete e o artista percebendo que seu trabalho não deva ser feito somente para outros artistas; a arte deve voltar a ser vista como algo mais próximo e evidente para o público que efetivamente não faz parte da redoma artística.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Sobre Pintores e Seus Modelos


2009

Observando o trabalho de Gerard Fromanger (acima), percebe-se que o artista aborda questões bastante atuais, utilizando uma linguagem contemporânea na confecção de suas obras. Por outro lado, é interessante ilustrar seu trabalho por meio de um texto que discorre sobre outro artista -Gerard às vezes é tão próximo a Diego Velasquez, que se pode analisar uma série de telas do pintor contemporâneo baseando-se num ensaio sobre uma obra do artista barroco: pois “de uma forma bastante ousada para a época, o artista põe em evidência alguns dos rostos socialmente menos marcantes na vida diária(…)- onde se inclui ele próprio, (…) que aqui aparecem refletidos em pequenas silhuetas fantas magóricas(…)”* .
O trabalho de Fromanger é de um todo bastante conciso. Entretanto, há de se chamar a atenção para a série O Pintor e Seu Modelo que ele produziu: apesar de possuir um tema completamente atual, o paralelo com a obra As Meninas, de Velasquez, é nitidamente possível. Na composição da obra tanto de Fromanger como de Velasquez, pode-se identificar o cotidiano da época em que foram pintadas, mas de uma forma não muito adotada: em ambas o artista se insere na pintura, sem ter o intuito de produzir um convencional auto-retrato.



Há de se diferenciar, porém, o modo como as obras interagem com o espectador: enquanto o pintor barroco concebe um grande espelho que transporta o público para a época em que foi produzida a tela, o contemporâneo se insere como uma mancha negra numa paisagem cotidiana, podendo o observador se colocar da mesma forma quando se identifica com a sombra que há no quadro. Em ambas, pode-se fazer referência ao que Sartre define por voyeur: enquanto Velazquez se pinta observando o público, traz à consciencia do observador de que ele também é observado (seja pela figura do quadro, que o olha fixamente, seja por qualquer outra pessoa que divida o mesmo espaço que ele); já Fromanger, no momento em que se insere como silhueta na obra, passa a ser identificado como voyeur (da paisagem presente no quadro e do público) no instante em que o observador nota a sombra como observadora também de algo. É no momento em que o observador da imagem se identifica na figura do observado (por Velasquez e Fromanger), que o voyeur passa a existir.
Ao contrário da obra As Meninas, Gerard dá a possibilidade de qualquer pessoa se colocar na pintura: quando se repousa em contraluz ao lado da silhueta do artista, é possível se inserir na tela e observar (quase como se tivesse sido pintado juntamente ao lado da imagem do pintor) a vitrine monocromática pictoricamente representada na obra Vermelho Cádmio Claro. Ou mesmo se colocar como o observador de uma silhueta que está olhando para algo, cruzando a sua própria sombra com a retratada na imagem.
Paralelamente, as duas obras permanecem próximas enquanto registro quase fotográfico: Velásquez congela um instante histórico e nos relata durante séculos o que aconteceu, como se nos mostrasse um fotograma original da cena relatada. Fromanger, por outro lado, registra a cena fotograficamente e a torna pintura quando quebra sua documentação, e se expõe nitidamente como observador da cena que observamos; aliás, se coloca na pintura no ato de projetar a fotografia na parede de seu grande ateliê, permanecendo no caminho da luz do projetor e inserindo-se na imagem, como quem observa novamente a cena (agora de fora). Em ambas, o artista aparece aos olhos do espectador, fazendo-se surgir dessa mágica gaiola virtual que a superfície que ele pinta projeta como espaço: em As Meninas, pelo fato de Velásquez estar explicitamente pintando a tela que vemos em nossa frente, isso fica mais claro.
Tanto Gerard Fromanger, como Diego Velásquez conseguem, nas duas pinturas, quebrar o distanciamento obra de arte – público – pintor, ao passo que o artista se coloca em sua obra (mas não é o objeto principal retratado) e convida o espectador a participar também da imagem. Isso as torna orgânicas, de tal forma que a experiência diante da pintura para cada espectador sempre será uma coisa nova e convidativa.
A exposição A Imaginação No Poder, de Fromanger, fica em Brasília até dia 15 de novembro. Ele, artista, um dos grandes nomes da Nouvelle Figuration, chega na cidade para mostrar um pedaço da arte francesa contemporânea, e nos embriagar de filosofia, história da arte e simplicidade; e além disso, nos lembrar um pouco de tudo que nós, homensdaeradigitalsemtempoparanada, esquecemos no nosso cotidiano.

*NABAIS, João-Maria. A Arte do Retrato n’As Meninas de Velásquez, in: Revista da Faculdade de Letras, I Série vol. V-VI, pp. 363-389, PORTO, 2007.

Texto em função da exposição Gerar Fromanger - a Imaginação no Poder, que esteve no CCBB de Brasília entre setembro e novembro de 2010. Disponível em: http://cultura.updateordie.com/2009/10/04/sobre-pintores-e-seus-modelos/

Lucian Freud

Depois de falar de beleza, de imitar a realidade, de maquiar a feiúra e tentar colorir o mundo que vemos, do século XVIII para cá, as artes plásticas começaram a falar do homem como ser pensante, como ser que deseja, que ama, que sofre e que sente – dando início a movimentos que seriam muito mais apaixonantes do que tudo que já fora feito -pelo menos pra mim. A partir da primeira metade do século XX, então, começa o surgimento de uma arte viva e atual, que fagocita a psicanálise e a filosofia a fim de falar do “eu”.
Vamos falar de você, então. Chame Francis Bacon para a conversa, Marina Abramovic. Chame Sigmund Freud, Sartre, Foucault, Derrida, Beauvoir, Skinner, Guatarri. Vamos falar de nós: Chame Lucien Freud e sua exposição gigantesca que chegou na cidade-luz há um mês e tem causado um alvoroço descomunal – e pare por aí. Pois bem, cheguei aonde queria : vamos falar de Lucian Freud, que é melhor.
Pra quem já viu de perto seu trabalho, chocante é perceber a dimensão do que é ser humano. As telas, praticamente todas tendo como locação o ateliê do artista, variam de iluminação, composição e modelos conforme os desejos e angústias do pintor: ora identifica-se um dia de primavera em que ventava suavemente, ora um dia de inverno prestes a chover. Freud usa todas as cores possíveis e imagináveis para representar um modelo: laranja, verde, roxo, azul – cores tão distantes dos tons da pele humana, mas que quando justapostas calculadamente dão uma textura quase real às imagens. É possível, ainda, observar o próprio ateliê do pintor em determinados trabalhos: a parede usada como um grande godê parece mais uma tela de Monet, um de seus campos de flores impressionistas – mínimos pontos, às dezenas, como se víssemos ao longe um jardim na primavera, e a parede estivesse viva e relutando contra toda essa angústia de existir que o pintor faz questão de retratar. O ato de ser humano é difícil demais e Lucian conseguiu entender isso melhor do que ninguém, continuando o legado de seu avô, Sigmund Freud, e abrindo o caminho para outros milhares de artistas jovens que queriam falar dessa angústia, mas não sabiam o que fazer. Não que ele tenha sido o primeiro a fazer isso, mas seu trabalho é primordial para entendermos a influência da psicanálise na Arte Contempoânea.
Seja MOMA, George Pompidou, MASP ou qualquer outro espaço cultural, o importante é se deixar ser tocado pela arte que está sendo produzida hoje em dia. A princípio pode até parecer um pouco chocante, mas ignorar simplesmente a genialidade dos grandes mestres contemporâneos seria deixar de lado uma reflexão mais profunda e evitar questões mais complexas do que costumamos achar que conhecemos bem : nosso eu.


texto escrito em função da exposição Lucian Freud - O Ateliê, que esteve no centro George Pompidou entre Março e Julho de 2010. Disponível em http://cultura.updateordie.com/2010/04/02/9396a-arte-do-ser-pensante/

sábado, 9 de outubro de 2010

Instruir e Divertir para Sempre

Nesse último domingo, 12 de setembro, às 23h no Hospital Beneficiência Portuguesa em São Paulo, Wesley Duke Lee se despediu do mundo artístico, não sem antes deixar um legado de obras que mudou a história das artes brasileiras.

Publicitário por formação, dedicado às artes plásticas por amor, Duke Lee firmou sua posição como artista indo contra, ironicamente, à arte política que se firmara no país na década de 60, trazendo, por exemplo, a Nova Figuração para o Brasil quando se tinha por todos os lados o Abstracionismo, além de ser pioneiro em instalações e happenings aqui, ainda não populares na época. Tinha sua própria visão política e sua forma de protestar contra o Academicismo, e graças à isso, o artista teve grandes dificuldades de conseguir seu espaço na cena artística do país, sendo recusado categoricamente em bienais de São Paulo, tendo finalmente uma obra aceita em 1965, que fora censurada.

Em parceria com Nelson Leirner e Geraldo de Barros, cria em junho de 1966 a Galeria Rex e o Jornal «Rex Time». Tinham como objetivo divulgar os artistas que se posicionavam contra a arte vigente na década de 60, e tampouco eram a favor do Mercado da Arte, das críticas que ocorriam em jornais, museus e bienais, além de discordarem do modo como a arte havia sido banalizada e se tornado nada mais que mercadoria, de acordo com o próprio Duke Lee. Exemplo claro disso teria sido o primeiro Rex Time intitulado « Aviso : é a Guerra »- contra a própria arte, no caso. O Rex possuía de certa forma o mesmo espírito dos Dadaístas e do Grupo Fluxus, visto que as intenções artísticas eram semelhantes. Por falta de recursos, porém, não durou nem um ano, encerrando suas atividades em maio de 1967.

Wesley, que veio a falecer de parada cardíaca, sofria de mal de Alzheimer e teve, felizmente, uma exposição montada em sua homenagem ainda em vida. A Pinakotheke no Rio de Janeiro inaugurou, após 18 anos sem nenhuma exposição do artista no país, uma mostra bastante completa, que começou em julho e permanece até dia 2 de outubro (mais informações podem ser obtidas no site da Pinakotheke). Sob curadoria de Fernanda Lopes, que defendeu em sua tese de mestrado pela UFRJ um trabalho conhecido como “A Experiência Rex”, a 29a Bienal da Arte de São Paulo também trará vários trabalhos de Nelson Leirner, Geraldo de Barros, Frederico Nasser, Carlos Fajardo e José Resende, conhecidos como o já citado Grupo Rex.

Wesley Duke Lee se despede mas deixa uma herança imensa para a arte brasileira. E pra quem ainda não conhece seu trabalho e pretende visitar as exposições que acontecem esse ano, deixe-se ser levado para o mar de possibilidades que o artista propõe. De acordo com o próprio Lee, “instruir e divertir” é o que o seu trabalho sabe fazer de melhor.

texto disponível em http://cultura.updateordie.com/2010/09/09/instruir-e-divertir-para-sempre-amem/