Jean Paul Sartre
O tempo é um dos objetos mais abstratos e difíceis de serem estudados em qualquer campo do conhecimento. Ele é transcendental ao mundo empírico e real, e assim se mostra ao ser humano. Sua completude se encontra muito acima de qualquer estudo ou teoria para ser inteiramente entendida, fazendo parecer às pesquisas já realizadas a seu respeito relativamente frágeis e ínfimas, e o ser humano pequeno demais para ter a capacidade de explicar sua dimensão.
Uma fotografia tirada há dois minutos tem o seu agora no instante em que é clicada, tornado-se presente registrado, e logo em seguida já é enviada para as coisas passadas. De acordo com Santo Agostinho, o tempo “só pode estar vindo do futuro, passando pelo presente e se dirigindo para o passado. Ele vem de um lugar que ainda não existe, passa por um campo que não há duração e caminha em direção ao que já não existe mais”. Heidegger, entretanto, contesta essa idéia de Agostinho de que o passado é o inexistente afirmando que ele pode, na verdade, “ser retomado no como de seu ser vivido”, ou seja, de que o passado é essencial e faz parte do que foi construído para o presente, e existe de certa forma ainda no agora, da mesma maneira que se mantém para o futuro. O filósofo Luciano Donizetti afirma tal linha de pensamento, dizendo:
“inicialmente, o passado existe a partir do presente, não como iluminação ou resquício (mancha) no presente, mas para o presente. O passado é aquilo que o para-si é sem possibilidade de coincidir com seu ser (foi) e, desse modo, está aberto ao presente.” (Donizetti, 2008,p.244)
O tempo natural, diz Heidegger, é parte de tudo e tudo faz parte dele – as coisas não se dão no tempo, na verdade o tempo está nelas. Partindo de tal pensamento, seu registro cronológico se nos dá, de certa maneira, numa tentativa inútil de medir algo que não tem exatamente uma forma simples de ser visualizada, porém é necessário ao ser humano para poder situar acontecimentos no tempo-espaço, de uma forma cíclica e maçante, que se repete identicamente ao contar os segundos, minutos, horas e dias do ano. O que resta a fazer é observar como o Tempo, grandioso em sua configuração, parece acessível e simples no momento em que atravessa as coisas: a folha de uma árvore que cai anunciando o outono, o vento que toca a grama e a faz dançar por longos minutos, as rugas que marcam o rosto de qualquer pessoa com o passar da idade - todas formas poéticas e delicadas dele mesmo se mostrar e tentar ser compreendido. Por ser visivelmente muito maior do que qualquer teoria possa explicar, Descartes, por exemplo, diz que o tempo só pode ser controlado por Deus, visto que não é possível nenhuma alteração no passado a partir do momento em que ele é fixado no presente, e que as três dimensões temporais só existem em instantes reduzidos, sendo que, se é verdade que exista um passado e um futuro, cabe a Deus controlar, por ser tão imenso e abstrato. O ser humano é capaz de modificar apenas o instante e seu presente.
Esse estudo infindável já realizado sobre o tema, que continua se atualizando com frequência, acabou tornando-se de grande interesse para a pesquisa da estudante Suzzana Magalhães, aluna do nono semestre de bacharelado em Artes Plásticas da Universidade de Brasília. Tendo sua produção completamente fundamentada em fotografia durante todo o seu percurso artístico, a artista pretendia, no principio do curso de Ateliê 1, produzir apenas um trabalho teórico, abandonando completamente sua produção. Por sugestão de Geraldo Orthof, orientador da matéria, resolve testar em sua pesquisa uma nova forma de mídia ainda não explorada por ela: o vídeo. O desafio seria conseguir falar sobre o Tempo utilizando uma técnica completamente nova para a artista. Decerto que os princípios para se produzir um vídeo têm raízes sim na fotografia, mas a tarefa de fazê-lo seria árdua da mesma maneira: questões técnicas, principalmente, seriam a maior barreira a ser enfrentada, propiciando, porém, um maior estudo para que uma série de trabalhos fosse realizada. Utilizando como bibliografia Heidegger, Sartre, Alan Lightman, entre outros, e como referência iconográfica vários vídeos, como por exemplo, o trabalho da artista Karina Dias sobre paisagem, busca inspiração para começar a produzir obras que tivessem o mínimo de coerência e força para poder tentar explorar algumas das teorias mais conceituadas sobre o tema em questão, conhecidas até o momento. O futuro é aquilo que é projetado, é o desconhecido rumo ao qual o presente é arrastado, e, a partir do presente é que se torna possível fazer ressurgir o passado ou projetar o futuro. O ato de se captar uma cena por alguns minutos, a sugestão de se trabalhar com vídeo é um tanto quanto interessante, pois, esse tipo de mídia traz claramente a questão do tempo agregada em si (toda a obra de arte traz, na verdade, mas é mais simples de percebê-lo através de filmes documentais). O momento em que dada cena é filmada é constituída por aquele presente da imagem que se dá instantaneamente à câmera, mas se torna passado automaticamente ao fim da gravação do vídeo. O filme quando revisto e re-projetado, se ressignifica e, para o espectador, a imagem torna-se presente mais uma vez, dando a possibilidade do público se colocar no local onde foi produzida, reconstruindo esse presente que já havia sido deixado no passado. O futuro da obra é sugerido e se reconstrói também à medida que o vídeo vai sendo repassado e apresentado a novos espectadores: essa é a mágica do tempo, esse total descontrole que se tem sobre ele e onde o futuro, o passado e o presente se fundem constantemente, sendo inclusive difícil saber diferenciar em que momento o presente se separa das outras duas dimensões temporais. A partir do presente tem-se total acesso ao que já passou e se constrói o que ainda há de vir, pois, é essa dimensão a base de toda a teoria temporal, essa fração de segundos que separa o passado do futuro.
A primeira tentativa de Suzzana Magalhães de construir um trabalho com esse tema, acabou por parecer-se um pouco demais com um videoclipe, durando cerca de oito minutos e tendo a música How Long Has This Been Going On do grupo de jazz Brad Mehldau como trilha. O vídeo foi gravado de forma quase ininterrupta, filmando basicamente imagens do Cerrado na rodovia que liga a cidade de Caldas Novas à Brasília. A forma como foi filmado lembra bastante o ritmo da música utilizada, como se as imagens acompanhassem algumas variações temporais e tonais dos sons produzidos pelo grupo de jazz. Por ser o primeiro experimento em vídeo, apresentou algumas falhas na questão técnica, tendo ainda vários detalhes a serem corrigidos na pós-edição. Nos outros trabalhos apresentados em seguida, tendo o período de três semanas para produzi-los, o estilo de videoclipe foi mantido, apresentando, entretanto, cenas diferentes das anteriormente propostas. O primeiro, por exemplo, filmava uma tempestade em close-up, recortada de um fundo completamente negro da noite, e que parecia fazer desenhos contínuos na imagem enquanto as gotas da chuva se movimentavam numa espécie de balé em sequências aleatórias que não se repetiam. O outro vídeo apresentado juntamente com o da chuva possuía em primeiro plano e em modo macro gotículas de água que ficaram na lente da máquina filmadora; enquanto isso, ao fundo, via-se piscando luzes coloridas de natal que ora perdiam o foco, ora o foco voltava ao normal, tendo o barulho da chuva ignorado e em seu lugar a música de Aphex Twin, Avril 14th, como trilha. Após todos esses experimentos, Suzzana percebeu que ainda não tinha atingido o primor que desejava: embora a poética dos vídeos estivesse bem próxima do que pretendia, era preciso corrigir algumas questões, como o tipo de áudio a ser inserido - o cuidado deveria também ser o de não deixar que virassem meros clipes que representassem a música utilizada no vídeo. Uma nova tentativa foi feita, acrescentando legendas às imagens, tentando manter o áudio natural da cena, que normalmente possuía barulhos de grilos ou de chuva ao fundo e suprimindo a utilização de músicas: por ter sido utilizado um texto extremamente narrativo na legenda, o vídeo concluído ainda possuía detalhes a serem modificados, visto que seu resultado foi um tanto quanto cansativo e piegas.
Continuando a pesquisa, e inspirada num dos textos contido no livro “ Os Sonhos de Einstein”, no qual o autor diz que
“algumas pessoas nascem sem qualquer sentido de tempo. Como conseqüência, seu sentido de lugar é intensificado chegando a níveis torturantes. Elas ficam deitadas na grama e são consultadas por poetas e pintores do mundo inteiro. A esses que não vêem o tempo implora-se que descrevam a localização exata das árvores na primavera, a forma da neve nos Alpes, o ângulo dos raios solares ao banhar uma igreja(...). Mas esses que não vêem o tempo são incapazes de contar o que sabem. Porque a fala requer uma sequencia de palavras, ditas no tempo.” (Lightman, 1993, p.113) ,
Suzzana produz uma última série de obras. Inspirada também nos vídeos intitulados Meditations, do artista Gary Hill, em que cenas são mostradas ao mesmo tempo em que narradas (como por exemplo, encher uma caixa de som de areia enquanto uma voz ao fundo explica “a caixa de som está sendo coberta”), percebe que buscando a simplicidade poderia talvez atingir o resultado que tanto ansiava. Um primeiro vídeo mostrava também luzes de natal sendo refletidas no vidro de um carro, em close-up, de forma que não era possível distinguir muito bem a cena. O áudio acrescentado possuía um leve tom de humor, e foi escolhido por justamente, num momento em que a estudante pesquisava referências de vídeos na internet, se deparou com um tutorial interessante no qual um músico japonês explicava como produzir uma flauta utilizando um ovo. As tentativas de música a serem tocadas com o objeto em questão produzem um barulho relativamente hilário e dão um tom cômico ao registro de uma mesma imagem contínua e aparentemente entediante. O segundo vídeo apresentado utilizava a mesma imagem do trabalho já citado anteriormente no qual um temporal foi filmado. Dessa vez, o som da chuva foi mantido ao fundo, e com o auxílio do técnico em engenharia de áudio Tomás Seferin, foi produzida uma trilha que remetesse a um ambiente familiar: sons de talheres sendo utilizados possivelmente durante uma refeição, assim como o de legumes sendo cortados; há também o barulho da televisão ao fundo, pessoas conversando qualquer coisa incompreensível, enquanto muda-se de canal frequentemente e, se prestar atenção, é possível entender que a maioria dos programas fazem alguma analogia ao tempo. A idéia do vídeo era a de passar o ambiente familiar de quando se está em casa, num dia à toa de chuva, como por exemplo, um domingo à noite vendo televisão, conversando, e não se tem a preocupação com as horas que correm. O terceiro vídeo, com a temática muito parecida com o anterior, foi o de melhor execução, na opinião da artista: a cena mostra um arbusto sob ação de uma ventania, com a sugestão de paisagem ao redor, mas não muito clara. O áudio natural da filmagem foi mantido, e uma legenda simples passa lentamente explicando o que a artista via no momento em que gravou a cena – o espectador nada enxerga além do arbusto e algumas árvores ao fundo, mas tem a continuação dessa paisagem sugerida pela descrição detalhada da legenda, e que, por outro lado, dá a mesma idéia do vídeo da chuva, da mesma série, remetendo o espectador a um momento calmo, como quando se está sentado à porta de casa olhando o clima, as aves voando, o vento passando, sem se preocupar com as horas que correm e costumam ser tão torturantes na vida contemporânea.
Os três vídeos acima foram apresentados como trabalhos finais em Ateliê 1, porém, o trabalho de Suzzana está apenas no início, e a estudante pensa em testar outras mídias inéditas (para ela), como por exemplo, montar uma instalação: a idéia inicial seria a de fazer uma longa série de fotografias que retratassem um local muito movimentado da cidade de Brasília entre as 6 da manhã e às 18h, com pessoas andando e o percurso do sol nascendo e caminhando pelo céu até se pôr. As fotografias seriam, nesse caso, acompanhadas de legendas simples e claras, no estilo de fotonovelas, mas descrevendo também a paisagem que está além das imagens e o público não pode ver, devido ao limite do enquadramento, da mesma forma das legendas inseridas no último vídeo apresentado pela estudante. A questão do tempo é ampla e possui referências em todos os campos possíveis de conhecimento, de forma que, para o próximo ano de pesquisa, Suzzana ainda deve abordar o tema da memória em Proust, inspirando-se no romance “Em Busca do Tempo Perdido” do autor, além de pesquisar como o tema se deu para a mitologia grega, bíblia e outras crenças. O cuidado será o de se evitar produções por demais piegas ou, ao contrário, que caiam completamente na abstração, para que o trabalho não se torne algo impossível de ser compreendido (como acontece com alguns textos de filosofia contemporânea que discorrem sobre o Tempo) e, ao contrário, seja algo acessível ao público para que as pessoas se indentifiquem com as imagens apresentadas pela artista. As possibilidades a partir disso são inúmeras, tanto na maneira de apresentar e produzir uma futura série de trabalhos, como nas áreas específicas nas quais tal tema será estudado e servirá de inspiração, de forma que o próprio tempo de pesquisa irá dizer os rumos certos que a poética da estudante seguirá.
Referências:
FADIMAN, Clifton e GOETZ, Philip W. The Syntopicon – An Index to the Great Ideas: Great Books of The Western World, v.2. Londres: Encyclopedia Britannica, Inc., 1996.
HEIDEGGER, Martin, O Conceito de Tempo. Tradução de Marco Aurelio Werle – Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. São Paulo, N. 2,1997.
LIGHTMAN, Alan, Sonhos de Einstein. Tradução de Marcelo Lev – São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SARTRE, J. P. A Imaginação. Col. Os Pensadores, p. 33. Tradução Luis Roberto Salinas Fortes. São Paulo: ed. Abril Cultural, 1978.
SILVA, Luciano Donizetti, Tempo e Temporalidade na Filosofia de Sartre, Pricípios, Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p.225-248. Disponível em http://www.principios.cchla.ufrn.br/24P-225-248.pdf.Acessado em 28/01/2011.
Sites:
http://www.karinadias.net/ . Acessado em 17/01/2011.
http://www.garyhill.com/ . Acessado em 18/01/2011.